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Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 227 MARCELO JORGE DE PAULA PAIXÃO Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil Tese de Doutorado apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas: Sociologia Banca Examinadora ___________________________________ Carlos Hasenbalg (Presidente) ___________________________________ Adalberto Moreira Cardoso (Orientador) ___________________________________ Luiz Werneck Vianna ___________________________________ Antônio Alfredo Sérgio Guimarães ___________________________________ Marcos Chor Maio Rio de Janeiro / RJ - Brasil Abril de 2005 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 228 O Globo, 5, março, 2005 (Segundo Caderno, p. 9) Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 229 “Chegando a noite, de volta a casa, entro no meu escritório: e na porta dispo as minhas roupas cotidianas, sujas de barro e de lama, e visto as roupas de corte ou cerimônia, e, vestido decentemente, penetro na antiga convivência dos grandes homens do passado; por eles acolhido com bondade, nutro-me daquele alimento que é o único apropriado e para o qual nasci. Não me envergonho de falar com eles, e lhes pergunto da razão de suas ações, e eles humanamente me respondem; e não sinto durante quatro horas aborrecimento algum, esqueço todos os desgostos, não temo a pobreza, não me perturba a morte: transfundo-me neles por completo” (Nicolau Maquiavel – 1513, Carta a Francesco Vettori) Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 230 “Aranha tece puxando o fio da teia. A ciência da abelha, da aranha E a minha Muita gente desconhece” (João do Vale / Luiz Vieira – Na Asa do Vento) Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 231 “Viver sem você foi antes triste do que duro. Devoto de São Jorge, o bafo do dragão, da vida, até que não foi tão difícil encarar. Porém, houve um dia que descobri que não sabia mais distinguir o som da tua voz. Simplesmente esqueci. Deletei. Para nunca mais. Pois é. Me desculpe, moça, se te transformei em um fantasma. Mas pensa bem. Naqueles dias, como é que eu ia fazer para sobreviver? De resto, reconheça. Não foi uma idéia boa, àquela tua, de somente procurar o médico tanto tempo depois. Quando me dei conta, após tantas dores, era você me entregando de presente aquele fusquinha de brinquedo com um perfume dentro. Até achei que tudo podia estar indo bem. Choraste quando saí do quarto. De fato, não sabia que tuas lágrimas tinham o estranho gosto do nunca mais. Ademais nem me entregaram o convite para a sua festa derradeira. Ah, dona, como é que tudo teria sido se tudo tivesse sido diferente?! Paciência, esta resposta tem a própria forma de um despropósito. Transformei a palavra mãe no meu termo proibido. Mãe só para os outros. Caras durões como eu não precisavam de tanto privilégio. E dali a vida foi em frente. Sei que hoje, além de na nossa saudosa memória, você mora no reino do nada. Simone de Sartre tinha razão. Quando eu também me for, daí que nos tornaremos eternos estranhos. Universo injusto: quem dera houvesse paraíso. Enfim, às favas com o instante. Aqui eternizo o registro. Em sua memória, dedico este singelo produto de meus caminhos. A ti, Lia, dedico esse mais nobre fruto de minha aflição”. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 232 Sumário Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil Resumo viii Agradecimentos ix Introdução 1 Desenvolvimento do Problema da Pesquisa 1 Metodologia do Trabalho 10 Parte 1 – A Longa Vida da Democracia Racial: a construção do mito Capítulo 1. – O Luxo dos Antagonismos: Gilberto Freyre e o Projeto de Modernização Conservadora do Brasil 17 1.1. Introdução 17 1.2. Casa Grande & Senzala e a Invenção de um Certo Brasil 18 1.2.1 O Método e o Mito 18 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 233 1.2.2 É Melhor Ser Alegre Que Ser Triste 20 1.2.3 Família Patriarcal 23 1.2.4 Culturalismo... Para Inglês Ver? 30 1.3. O Salto Mortal da Modernidade 33 1.4. Democracia Racial: vida e morte 37 1.4.1. Em Busca do Equilíbrio Perdido 37 1.4.2. Democracia Étnica 42 1.4.3. Democrático Ma Non Troppo 50 1.4.4. Terceiro Tempo Social 54 1.4.5. Negro Demais no Coração 59 1.5. Conclusão 67 Capítulo 2 – Paraíso Inocente: a Escola de Chicago e o Estudo das Relações Raciais na Bahia (1930-1950) 73 2.1. Introdução 73 2.2. Donald Pierson: o processo de estratificação sócio-racial no Brasil 74 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 234 2.2.1. Brancos e Pretos na Bahia 74 2.2.2. Considerações Críticas Sobre “Brancos e Pretos na Bahia” 84 2.3. Raça e Classe no Brasil Rural 88 2.3.1 Visão Geral do Estudo 88 2.3.2. Características dos Espaços Ecológicos Estudados 90 2.3.3. Constituição das Classes Sociais e Sua Composição de Cor 91 2.3.4. Sistemas de Classificação de Raça/Cor 92 2.3.5. Presença dos Estereótipos Raciais 94 2.3.6. Preconceito de Classe e Preconceito de Cor 97 2.3.7. Cor e Mobilidade Social 100 2.3.8. Presença de Conflitos Sociais Entre os Grupos de Cor 102 2.3.9. Reflexões Conclusivas Sobre Race and Class in Rural Brazil 104 2.4. Um Debate Clássico: Landes, Frazier & Herskovits e o Legado do Passado Africano no Brasil. 108 2.4.1. Alice no País das Maravilhas 108 2.4.2. Frazier e os Estudos Sobre a Família Negra na Bahia, Brasil 113 2.4.3. Herskovits e a Resistência dos Africanismos no Brasil 117 2.4.4. Reflexões Sobre a Polêmica Landes, Frazier & Herskovits 121 2.5. Conclusão 128 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 235 Parte 2 – A Lenda da Modernidade Encantada (o mito questionado): compreensões da moderna tradição culturalista brasileira sobre raça estratificação e social: Capítulo 3 – Doutores do Nordeste: estudos sobre status, classe e relações raciais em Salvador e Recife. 134 3.1. Introdução 134 3.2. As Escolas e Suas Disciplinas: médicos baianos e juristas pernambucanos 135 3.3. Doutor da Bahia 144 3.4. Doutor de Pernambuco 154 3.5. Doutores do Nordeste 163 Capítulo 4 – Itapetininga Fica Perto de Tatuí: as relações raciais e suas formas 166 4.1. Oracy, o Contexto, os Amores 166 4.2. O Preconceito e Suas Formas 167 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 236 4.3. Cor e Classe na Sociedade do Preconceito Racial de Marca 177 4.4. Oracy Responde aos Críticos 184 4.5. Indagações ao Mestre 186 Capítulo 5 – As Armadilhas DaMatta: leituras sobre estratificação e questão racial no mundo da casa e da rua 196 5.1. Rito de Passagem 196 5.2. Dias de Festa 197 5.3. O Paradigma DaMatta 204 5.4. A Fábula das Três Raças 210 5.5. Reflexões Conclusivas 214 5.5.1. As Armadilhas do Dilema 214 5.5.2. As Armadilhas da Fábula 220 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 237 Capítulo 6 – A Lenda da Modernidade Encantada 227 6.1 Introdução 227 6.2. Modernidade e Desencanto 232 6.3. As Vias do Moderno Encantamento: Richard Morse 236 6.4. As Vias do Moderno Encantamento: Sérgio Buarque de Holanda 239 6.5. As Fundações da Lenda da Modernidade Encantada 246 6.6. A Lenda da Modernidade Encantada e as Relações Raciais 248 6.7. Das Saudades e Escravos 262 6.8. Reflexões Finais Sobre a Lenda da Modernidade Encantada 271 Parte 3 – O Mito Desconstruído: reflexões sobre as interpretações alternativas a democracia racial Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 238 Capítulo 7 – Madureza: relações raciais e revolução na obra de Florestan Fernandes 278 7.1. Introdução 278 7.2. Passado Sem Glória 279 7.3. O Peso da Tradição 283 7.4 O Novo Negro 288 7.5. O Mito da Democracia Racial 293 7.6. Tempos de Revolução 305 7.7. Um Certo Culturalismo 315 7.8. Post-Scriptum: reflexões sobre Roger Bastide 319 Capítulo 8 – A Cultura das Desigualdades Raciais no Brasil Contemporâneo 326 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 239 8.1. Introdução 326 8.2. As Desigualdades Raciais no Pensamento Social Brasileiro (1950-1970) 327 8.3. Estudos Comparados de Relações Raciais nas Américas 332 8.3.1. A Escravidão Benigna na América Latina: Tannembaum & Elkins 332 8.3.2. A Introdução da Variável Estrutural nos Estudos Sociológicos Comparados 335 8.3.3. A Nova Interpretação Culturalista Sobre as Relações Raciais Brasileiras 342 8.4. Aspectos da Fundação dos Modernos Estudos das Desigualdades Raciais no Brasil Contemporâneo 356 Capítulo 9 - Paradigmas de Estudos das Desigualdades Raciais em Debate: 361 9.1. Introdução 361 9.2. Indicadores Demográficos 363 9.3. Indicadores Vitais 368 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 240 9.4. Indicadores de Qualidade de Vida 378 9.5. Uma Agenda de Estudos 387 Considerações Finais 391 Bibliografia 414 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 241 Resumo A presente tese se dedica a estudar, em primeiro lugar, o modo pela qual a moderna tradição culturalista brasileira, através de seus cientistas sociais mais significativos, refletiu sobre o tema das desigualdades sócio-raciais no Brasil. Desta forma, buscamos mostrar que não obstante o tom quase sempre valorativo que os autores culturalistas analisaram as relações raciais brasileiras, de seus estudos, também podemos recuperar importantes aspectos sobre a dinâmica da construção das desigualdades entre brancos, mestiços e negros em nosso país. Ainda a este respeito analisamos os argumentos que esta tradição, especialmente no interior da produção mais recente, desenvolveram para tentar demonstrar que mesmo tendo em vista a persistências das assimetrias nas condições de vida entre os distintos grupos de raça/cor no Brasil, ainda assim o modelo brasileiro de relações raciais apresentaria diversos pontos positivos e que, portanto, deveria ser preservado. Em segundo lugar nos preocupamos em entender qual foi o estatuto que as dimensões simbólicas e culturais tiveram no interior dos estudos realizados por Florestan Fernandes e nas pesquisas feitas a partir do começo dos anos 1980 ancoradas nos indicadores demográficos. Neste momento buscamos mostrar que tais interpretações não deixaram de lado os aspectos relacionados à dimensão cultural, antes as tendo incorporado dentro de um quadro teórico mais amplo e reportado ao próprio processo de construção das desigualdades sócio- raciais em nosso país. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 242 Agradecimentos Uma tese de doutorado representa um algo especial na vida de qualquer mortal que tenha ousado passar por esta aventura. As solitárias horas de estudos, reflexões e escrita. As angústias e os suores. Os desesperos, as variações de humor. Os ataques de riso. Tudo isso faz parte do caminho. Enfim, dado que agora posso dizer que bom que tudo deu certo, falarei isso para encorajar aos que seguem depois. Não desistam: é bonita a paisagem daqui desta margem do rio. Por outro lado, pondo um necessário toque pessoal nesses agradecimentos, a conclusão dessa tese igualmente representa um momento muito especial na minha vida. Negro. Nascido em berço pobre. Órfão de mãe desde os seis anos. Talvez eu venha a irritar os estatísticos, e a sua prepotência, em tentar explicar o mundo através do cálculo probabilístico. Mas vá lá. Sem exageros. Seria impossível chegar ao momento presente sem a força, o apoio e a ajuda de tantos e tantas que, pelos mais variados meios, foram essenciais nesta caminhada. E aqui valeu de tudo: palavras amigas ou de incentivo, broncas honestas, olhar, aperto de mão, suspiros. Como estas manifestações de ensinamento, amizade e carinho foram essenciais nesta caminhada! É muito fácil abrir mão de tudo. Não se segue adiante sem os amigos, parceiros e todos aqueles que nos amam. Fecho os olhos e ouço cantar o velho Melodia: as pessoas que eu amo, eu amo bastante. Vou mencionar alguns nomes abaixo. Vai faltar gente boa nesta lista bem sei. Desculpe-me de antemão os que não foram citados. Contrariando o que seria razoável estou defendendo este estudo, aos 39. Um pouco coroa, portanto. Caduco, sei que estarei esquecendo alguém... Começarei agradecendo as instituições que foram deveras importantes na caminhada. Inicio pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pelos dois anos de licença integral que viabilizou a realização da pesquisa que forma a presente tese. Outrossim, pela devida compreensão no que tange à ocupação de parte do tempo de minhas atividades docentes com a realização do curso de doutorado e a elaboração escrita deste estudo. Nominalmente cito os Diretores Gerais, João Carlos Ferraz e João Sabóia e os Diretores de Graduação (cargo que hoje ocupo), Maria Lúcia T W Vianna e Carlos Frederico. Colegas, muito obrigado pelo apoio institucional necessário que, de fato, nunca faltou. Mas, enfim, também agradeço ao IE/UFRJ pelo fato deste ser um elo de minha própria vida. Fiz minha graduação em economia, lá pelos idos dos 1980. Então, portanto, o agradecimento igualmente se imbrica com o tanto que aprendi e vivi com meus então professores, muitos Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 243 hoje colegas, companheiros de turma e demais profissionais. Me permitirei mencionar alguns: José Ricardo Tauile, e seu coração do tamanho do seu porte. Leonarda Musumeci, além de interlocutora permanente, minha primeira professora de razão culturalista. Nelson Chalfun (aliás Nelson, valeu pela aquela história da maratona, várias vezes me lembrei dela nos momentos mais complicados da tese). Galeno Ferraz, orientador de minhas primícias monográficas sobre Rosa Luxemburgo e hoje um belo amigo. Elisa Muller, eterna professora. Valéria Pero e mais uma vez João Sabóia, colegas de estudos do mundo trabalho. Amir Coelho, outro grande incentivador. Aos tantos alunos que sempre nos motivam ao aprofundamento das reflexões. Igualmente expresso meus agradecimentos ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, da Universidade Cândido Mendes, pelo período em que pude realizar o curso de doutorado em Sociologia. Sendo esta instituição uma entidade privada, ter podido realizar este curso sem nenhum ônus financeiro, não pode em absoluto ser considerado mero detalhe. Meus especiais agradecimentos ao conjunto de seus brilhantes professores. Destaco, mormente, Maria Alice R Carvalho, Renato Lessa (Lessa, se um dia tiveres paciência para lê- la, repara que, por sua influência, essa tese guarda um fundo cético...), José Maurício Domingues, Fabiano G dos Santos, Luiz Werneck Vianna, Maria Celi Scalon, João Feres, Luiz Machado. Uma especial e carinhosa menção aos competentes técnicos administrativos que fazem parte do quadro profissional desta instituição acadêmica, destacando os nomes de Valéria, Lia, Beatriz da biblioteca, Lula e os amigos da fotocópia. Ao meu orientador Adalberto Moreira Cardoso. A ti, um abraço em especial pela amizade, pelo diálogo, pela paciência quanto à demora para a conclusão desta tese e por sua fundamental orientação ao longo da gestação e conclusão deste trabalho. Especiais agradecimentos, igualmente externo, à banca de avaliação dessa tese. Carlos Hasenbalg, mestre de toda uma geração, e que durante a defesa foi simplesmente brilhante com seus comentários e sugestões. Marcos Chor Maio, professor desde os tempos de Brasil- América - primeiro a me contar que a democracia racial não passava de reles mito -, e uma pessoa a quem muito estimo e admiro. Antônio Sérgio Guimarães, pelo bom humor, diálogo e pelo aprendizado que pude ter mediante conversas pessoais e da leitura seus livros. Mais uma vez, Luiz Werneck Vianna, um dos pontos altos da defesa com suas contestações firmes e consistentes aos meus argumentos. A todos vocês informo que, mesmo sem ter sido exigido para tanto, procurei incorporar vossas considerações na versão ultimíssima desse trabalho. Esta tese contou com um apoio financeiro, durante sua conclusão, em 2004, da Fundação Ford. A este suporte agradeço especialmente a Ana Toni e Denise Dora. Enfim, Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 244 nunca é demais dizer que esta bolsa contribuiu de forma decisiva para a viabilização da conclusão do presente esforço. Obrigado mesmo por vosso apoio! Dizer que Foca atua somente como meu programador de microdados seria uma verdade somente parcial. Na verdade, além desta função, o tenho como um dos meus principais interlocutores, e não apenas em questões estatísticas e informáticas. Amigo, na falta de palavras mais solenes, espero que aceite o meu singelo: valeu!!! No plano mais íntimo, como disse, a lista estará seguindo deveras incompleta. Sei que estarei sendo injusto com muitos. Incluirei no scretch os que estiveram mais próximos comigo nestes últimos anos. José Octávio Van Dunem, irmão d´além mar, e fiscal de tese. Marcelo Parada Figueiredo, parceiro de textos escritos em conjunto e de outras cantorias. Marco Aurélio Santana: e a arte da amizade dos loucos de cara. Ricardo Mello, este melhor amigo de Jorge de Paula. A comadre Ruth Mello, e ao vosso filho, meu lindo afilhado Danilo. Marcelo Gaba Mesquita, por tudo de bom construído em mais de vinte anos de amizade. Luiz (ou Luizinho Caxambi), e sua ex-companheira Márcia. Entre outros motivos, muito obrigado por Sofia. Leandro Vallareli, companheiro de tantas fases. Paulinho Adissi, presidente de honra do grupo dos pesquisadores equilibristas. Fernando Firmo, pelo apoio naqueles dias tão difíceis. Rosana Heringer, amiga e parceira de reflexões do tema das relações raciais. Flávio Gomes e Paulo Lins, vértices de um mesmo triângulo. Aos atores, off-sina, Richard e Lílian. A Mário Magalhães e Fernanda da Escóssia, casal amigo e querido. Márcia Aran, esta madrinha de Juba. Ao seu moço do disco voador, Miguel de Simoni, antigo mestre, amigo e orientador, de vida, e da dissertação de mestrado nos saudosos tempos da COPPE. Por sinal, Miguelzinho, aí nas estrelas tem rolado o seu famoso almoça-e-vai? Aos companheiros, e professores, do movimento negro. O que aprendi, e aprendo, com vocês é difícil mensurar. Mais uma vez, decerto, cometerei deslizes. Mencionarei algumas pessoas não apenas com o fito de não ser tão excessivamente injusto. Por uma série de razões, singelamente me seria impossível deixar de mencioná-las: Amauri Queiroz, presidente do IPDH. Edna Roland, e não somente por ter sido relatora da III Conferência Mundial Contra o Racismo. Deyse Benedito e Raquel Souzas, pela amizade e interlocução. Ao poeta Elé Semog e a Giovanni Harvey. Ao livreiro Papa-Léguas. Aos amigos e amigas Sueli Carneiro, Diva Moreira, Hélio Santos, Nilza Iracy, Lúcia Xavier, Jurema Werneck, Makota Celinha, Luiza Bairros, Azoilda Loureiro, Helena Oliveira. Ao mestre Amauri Mendes. Às combativas vereadora Olívia Cunha e deputada Jurema Batista. Renato Emerson e Frei David. Fernanda Lopes e demais companheiros de pesquisas sobre a saúde da população negra. Enfim, não somente, a vocês; axé!!! Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 245 Aliás, axé também aos aliados na grande imprensa escrita, que remando contra a maré, constituem-se em atores importantes nessa nossa luta em prol da cidadania da população afrodescendente. Isso além de serem pessoas às quais venho tendo um diálogo sempre profícuo. Não quero, de novo, esgotar a lista. Mas vá lá: Élio Gaspari, Miriam Leitão, Ancelmo Góis, Flávia Oliveira, Cássia Almeida, Antônio Góis e mais uma vez Fernanda da Escóssia. Parabéns por vosso trabalho! Especiais saudações, igualmente, envio para minha psicanalista Nelisa Guimarães. Você, Nelisa, sabe perfeitamente das tantas que fiz para chegar à conclusão desse estudo, a rigor tendo sido praticamente uma co-orientadora. Muito obrigado por ter me permitido chegar ao fim da tese não totalmente insano, ou apenas parcialmente insano. No plano familiar fica aqui todo um capítulo a parte. Se as barras ao longo da vida não foram poucas, certamente essas se tornaram suportáveis por conta desse apoio generoso que proveio dali. Marildo Menegat, senão tanto por ser um dos mais brilhantes de minha geração, pela sua honesta boa vontade de rir de minhas piadas. Beatriz, sua companheira, pessoa afetuosa e amiga. Aos bravios e generosos pai e irmãos de Elizete lá do Sul: seu Adilo, Rua, Gô, Márcia e Eliana. Aos pequenos Cirilo, Francisco e Ângelo. Magdalena M Lopes de Paula, minha efetiva mãe, pai, avó, avô, último zagueiro. Enfim, foi ela que segurou a barra material e afetiva - tanto minha, como de minha irmã – naqueles dias tão zangados de nossa infância e adolescência. Márcia, irmã, e eterna incentivadora. Heraldo, cunhado, amigo, sempre pronto a dar um apoio nas horas necessárias. Aos meus sobrinhos Gabriel, Mariana (a Super-Malandrinha) e Letícia (Sabuguinha), pelo carinho que o tio tanto tem por vocês e que sinto ser verdadeiramente mútuo. Um beijo todo especial, com gosto de vida, para Elizete Menegat: minha amiga, interlocutora, companheira, por tudo de bom vivido nos últimos 15 anos de vida em comum. Obrigado, meu amor, pelo carinho dedicado nessa nossa longa caminhada. Espero ter-lhe sido, ao longo de nossas vidas, igualmente companheiro. Aos meus queridos filhos Juliano (Juba!) e Sofia (Tica!). Concordo com vocês: de fato o papai é a maior figura!!! Meus raios de sol de alegria, vida e ternura... Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 246 INTRODUÇÃO “Hoje eu vim minha nega. Como venho quando posso. Na boca as mesmas palavras. No peito o mesmo remorso....” (Coisas do Mundo Minha Nega – Paulinho da Viola) Desenvolvimento do Problema da Pesquisa O tema das relações raciais, especialmente entre brancos e negros, guarda uma longa tradição no interior do pensamento social brasileiro. Esta realidade, em parte, obedece à própria evolução histórica de nosso país. Entre o século XVI e XIX, o Brasil foi o maior importador de escravos africanos das Américas. O historiador norte-americano S. Behrendt (1999) estimou que entre 1519 e 1867, 11.569 milhões de africanos foram transportados, como mercadorias, do continente africano para o americano. Destes, 3.850.000 milhões de negros tiveram o Brasil como destino1. Não foi somente pelo aspecto específico da importação de escravos que o nosso país se notabilizou. Na verdade, a totalidade da vida social do Brasil colonial e imperial foi marcada pela indelével presença do sistema escravista. A este respeito, Joaquim Nabuco, no seu clássico O Abolicionismo afirmou: “tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academia e hospitais, tudo, absolutamente tudo o que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que a faz trabalhar” (1999 [1881]:24). Ou seja, a instituição escravista no Brasil, ao contrário dos EUA, era total: reportava-se ao conjunto das regiões do país; havia donos de escravizados de diversas condições sociais, era a condição de trabalho das ocupações produtivas mais relevantes da nação, podia ser encontrada tanto no campo, quanto na cidade. Do mesmo modo, o Brasil, tendo posto cabo ao odioso regime em 1888, foi o último país das Américas a extinguir a escravidão. Ou seja, Karl Marx já descansava no cemitério londrino de Highgate havia cinco anos, quando o escravismo acabou em nosso meio (ver quadro na próxima página). 1 A este respeito ver também Scisínio, 1997 Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 247 Data de Abolição da Escravidão nos Países da América Latina e Caribe País Data Haiti 1803 Chile 1823 Federação Centro-Americana 1824 México 1829 Ilhas do Caribe Britânicas 1834 Guiana Britânica 1834 Uruguai 1846 Ilhas do Caribe Francesas 1794 – 1802 / 1848 Guiana Francesa 1794 - 1802/ 1848 Colômbia e Panamá 1850 Equador 1852 Argentina 1853 Venezuela 1854 Peru 1855 Bolívia 1861 Ilhas do Caribe Holandesas 1863 Guiana Holandesa 1863 Paraguai 1870 Porto Rico 1878 Cuba 1886 Brasil 1888 Fonte: Appiah & Gattes Jr [ed] (1999:6) Ao longo de todo o século XX, apesar de ter ocorrido um decréscimo relativo na proporção dos auto-declarados pretos e pardos no seio de nossa população, prossegue, e prosseguirá, ocorrendo uma indelével presença negra no Brasil, nos planos demográfico, cultural, social e político. É um fato notório que o processo de construção da identidade nacional em grande medida associa-se com as manifestações culturais de origem afrodescendente. Por outro lado, paradoxalmente, passados 117 anos da abolição, as pronunciadas disparidades nas condições de vida dos distintos grupos raciais continuam presentes em nossa realidade. Por todos estes motivos, o tema das relações entre os grupos de raça/cor, de fato, vem a ser dos mais importantes campos de reflexões e estudos no interior das ciências sociais de nosso país. Em um trabalho escrito nos anos 1970, Couceiro (1974) identificou 857 estudos sobre o negro brasileiro e os marcos assumidos pelas relações raciais. Nos anos 1990, Barcelos el al (1991) já apontavam a existência de 2.700 estudos versando sobre o mesmo tema. Não viria ao caso, naturalmente, analisa toda esta literatura. De todo modo, mobilizando o aporte de Benedict Anderson (1991 [1983]), salientamos que muitos destes estudos estava em jogo o próprio processo ideológico de construção do Brasil enquanto nação. Ou seja, dado que a primeira parte do processo de construção do projeto nacional já estava dada - representada pelo imenso território formado pelas terras brasileiras -, ao menos até os anos 1930, o debate girava em torno do tipo étnico brasileiro e a sua capacidade deste vir a se tornar um povo, portador de um determinado caráter e cultura, próprios ao mundo civilizado (C.f. ELIAS, 19914 [1939]). Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 248 Laraia (1979) e Vilhena (1997b), cada qual ao seu modo, propuseram uma periodização dos momentos sobre o estudo das relações raciais em nosso país. Ainda que os enfoques daqueles trabalhos não fossem os mesmos, de alguma forma pode-se entender que ambos os autores identificaram três períodos a respeito desta produção intelectual. O primeiro momento seria aquele demarcado pelo debate entre Nina Rodrigues e Sílvio Romero sobre o tema da mestiçagem do povo brasileiro e seus efeitos sobre a sociedade de nosso país. Assim, ao passo que o médico baiano tinha uma avaliação pessimista em relação ao caldeamento racial que já vinha operando a séculos no Brasil, entendendo tal processo como causador de uma irreversível degenerescência da nossa gente; o literato sergipano tendeu a ser mais otimista acreditando que deste processo caldeador, resultaria o próprio tipo brasileiro do futuro, ou seja, branco e plenamente adaptado (racial e culturalmente) aos trópicos. Evidentemente a gama de autores que refletiram sobre esta questão não se reporta apenas aqueles dois pensadores, incluindo também outros tantos como, por exemplo, Euclides da Cunha, Roquette Pinto e Oliveira Viana cada qual ao seu modo preocupado com o tema da mestiçagem e do branqueamento da população brasileira (C.f. SKIDMORE, 1976 [1974]; SCHWARCZ, 1995 [1993]). O segundo momento do debate sobre as relações raciais no Brasil esteve marcado pela tradição culturalista, inaugurada fundamentalmente pelos escritos do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre e pelos estudos do médico alagoano Arthur Ramos. Apesar das diferenças de enfoques presentes entre ambos os autores, unifica seus respectivos aportes a concepção de que na compreensão do caráter nacional brasileiro, usando o termo de Moreira Leite (1976 [1954]), os fatores raciais seriam secundários frente às variáveis de ordem sócio-cultural. Do mesmo modo, a perspectiva culturalista apontava para o caráter fundamentalmente harmonioso do padrão brasileiro de relacionamentos inter-raciais, o que levou Freyre a classificar nosso país como uma democracia étnica (ou, usando um termo mais usual, conquanto pouco mencionado pelo autor, democracia racial). Outro importante veio intelectual que contribuiu para reforçar tal perspectiva foi a proveniente do ambiente acadêmico norte-americano. Assim, os autores ligados à tradição da Escola de Chicago - entre outros, Pierson, Wagley, Frazier, Landes -, baseados na teoria do ciclo das relações raciais de Robert Park, passaram a entender, de forma solidária à democracia racial, a sociedade brasileira como multiracial de classes. Roque Laraia e Luís Vilhena igualmente identificaram como sendo o terceiro grande momento de reflexão sobre as relações raciais no Brasil, o aporte inaugurado pelos estudos de Florestan Fernandes. Este autor, que se iniciou nestes estudos através do ciclo de pesquisas Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 249 financiado pela UNESCO sobre os contatos entre brancos e negros no Brasil (C.f. CHOR MAIO, 1997), esteve embasado em uma perspectiva estrutural-funcional, ou histórico- funcional. Deste modo, a partir de Florestan – posteriormente seguido por Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso entre outros autores -, as relações raciais brasileiras deixavam de ser lidas pelo enfoque de uma pretensa harmonia racial, pelo contrário, passando, a democracia racial, a ser classificada como um mito, tanto no passado, quando as relações senhor e escravo teriam se caracterizado pelo seu aspecto cruel e coisificado, quanto no presente, quando as ideologias raciais tradicionais acabavam sendo traduzidas como um meio de preservação das distâncias sociais entre negros e brancos. Ao longo dos anos 1980, após os trabalhos pioneiros de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, o debate sobre as relações brasileiras passaria por um quarto momento (C.f. SCHWARCZ, 1999; GUIMARÃES, 1999; HANCHARD, 2001 [1994]). Este novo período foi marcado pelo intensivo uso de indicadores demográficos para fundamentação das pesquisas e em uma concepção sobre o modo de funcionamento do racismo à brasileira que, senão de todo diferente da tradição inaugurada pelos sociólogos da USP, era mais cética quanto à capacidade da modernização da sociedade brasileira, por si só, poder vir a gerar transformações progressistas na seara dos relacionamentos inter-raciais. Assim, ao longo dos últimos 25 anos ocorreu uma multiplicação de trabalhos debruçados sobre o estudo das relações raciais brasileiras, invariavelmente críticos ao modo de funcionamento dos contatos inter-raciais entre brancos e negros em nosso meio. A começar pelos primeiros estudos de Hasenbalg (1979) e Valle Silva (1980). Posteriormente estes autores publicaram diversos livros e pesquisas versando sobre os mais variados aspectos das desigualdades raciais no Brasil, tal como o da mobilidade social (VALLE SILVA, 1988, HASENBALG, 1988); do casamento inter-racial (VALLE SILVA, 1991; HASENBALG, VALLE SILVA & BARCELOS, 1989), dos indicadores de escolaridade (HASENBALG & VALLE SILVA, 1992), dos aspectos históricos da formação do mercado de trabalho brasileiro (HASENBALG, 1992); sobre o tema da pobreza e das desigualdades sócio-raciais no Brasil (VALLE SILVA, 1992), da vitimização e participação política (HASENBALG & VALLE SILVA, 1993) e, dos processos de classificação racial em nosso país (VALLE SILVA, 1994, 1996). Estes estudos, bem como a matriz teórica e metodológica que os informaram, influenciaram dezenas de novas contribuições de outros autores e autoras sobre o tema das desigualdades raciais em nosso país. Deste modo, desde os anos 1980 e, especialmente a partir da segunda metade dos anos 1990, os mais diversos campos de análise passaram a ser Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 250 cobertos pelos estudos acadêmicos do Brasil englobando a dimensão das desigualdades raciais. Dentre outros, destacamos os estudos sobre a pobreza e indigência (HENRIQUES, 2001); o mercado de trabalho (OLIVEIRA, PORCARO & COSTA (s/d), BATISTA & GALVÃO, 1992, LIMA, 1994, SOARES, 2000, CASTRO & BARRETO (orgs), 1998; TELLES, 1990, 2003, MAPA DA POPULAÇÃO NEGRA NO MERCADO DE TRABALHO, 1999, MARTINS, 2003a e 2003b); indicadores educacionais (ROSENBERG, 1991, BARCELOS, 1992, BELTRÃO & TEIXEIRA, 2004); padrões de nupcialidade (BERQUÓ, 1991, SCALON, 1992, PETRUCCELLI, 1999), as razões de mortalidade dos grupos raciais (BATISTA, 2000); mortalidade infantil (CUNHA, 1998); mortalidade materna (MARTINS, 2004), desigualdades de raça e gênero (BAIRROS, 1991), classificação censitária da variável raça/cor (WOOD, 1991, PETRUCELLI, 2002), Índice de Desenvolvimento Humano (PAIXÃO, 2003a), esperança de vida (WOOD & CARVALHO, 1994, PAIXÃO, 2004), trabalho infantil (PAIXÃO, 2003b); questão agrária (PAIXÃO, 2005b), penalização (ADORNO, 1995), vitimização e letalidade da ação policial (CANO, 2000), ações judiciais contra práticas de racismo (GUIMARÃES, 1998), mobilidade social (OSÓRIO, 2003). Esta miríade de contribuições - na verdade, apenas uma fração da produção recente -, igualmente foi bastante favorecida pelo aumento das bases de dados demográficos existentes à disposição dos pesquisadores das relações raciais. Através do Gráfico 1, pode-se ver que ao longo dos últimos vinte anos a quantidade de pesquisas realizadas pelo IBGE contendo a variável raça/cor no campo de respostas passou de 9, na década de 1980, para 13 na década de 1990, sendo previsível que cresça ainda mais no decênio do 2000 (C.f. PAIXÃO, SOUZAS & CARVANO, 2004). Vale salientar que na contagem das bases de informações estatísticas contidas no Gráfico 1 não se incluem outras fontes de dados primários atualmente factíveis de serem mobilizadas pelos pesquisadores das desigualdades raciais tais como o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e o Sistema Nacional de Informação Sobre os Nascidos Vivos (SINASC), produzidas pelo DATASUS/Ministério da Saúde; e os indicadores do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB), Exame Nacional do Ensino Médio (ENEN) e Provão, organizados pelo INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/Ministério da Educação). Sem embargo, o que estas informações demonstram é que o aumento de estudos sobre o tema das desigualdades raciais no Brasil se retro-alimentou com uma mudança de ambiente institucional que tornou o poder público menos refratário ao levantamento desta sorte de indicadores no interior das pesquisas e cadastros oficiais. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 251 1 1 1 1 9 13 6 0 2 4 6 8 10 12 14 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 Gráfico 1 - Número de Pesquisas Demográficas Realizadas pelo IBGE Contendo a Variável Raça/Cor 1940-2000 (por década) Número de pesquisas por décadas Obs: na década de 2000 somente estão listadas as pesquisas realizadas até o primeiro semestre de 2004. Fonte: Paixão, Souzas & Carvano (2004) Para além da mera existência destes estudos e bases de dados cabe salientar que, em todos eles, existe uma grande coerência nos seguintes termos: i) em todos os levantamentos realizados até o momento no Brasil, versando sobre o tema das disparidades raciais, foram constatadas fortes desigualdades separando as condições de vida dos negros e dos brancos em nosso país, ou seja, estas disparidades estão presentes nos mais distintos planos da vida social (no mercado de trabalho, no acesso à escola, aos bens de uso coletivo, saúde, mortalidade, acesso à justiça, vitimização, acesso à terra etc); ii) as desigualdades raciais estão presentes invariavelmente no interior de todas as regiões geográficas do Brasil. O fato de haver uma evidente coerência nos indicadores das desigualdades raciais de nosso país não quer dizer que exista propriamente um consenso no interior do pensamento social brasileiro em relação à leitura destes dados. Na verdade, esta questão nos obriga a voltamos a uma certa perspectiva dos estudos tanto de Vilhena, como principalmente de Laraia, sobre os diversos momentos da reflexão acerca das relações raciais brasileiras. Assim, ao menos implicitamente, nos artigos destes dois autores parece que a história do pensamento sobre as relações raciais no Brasil forma uma espécie de via de mão única como se o momento subseqüente condenasse os estágios anteriores à mera condição de história do pensamento. Pelo contrário, cabe salientar que no momento atual existem pontos de vista alternativos que ainda permanecem bastante atuantes e que disputam teoricamente a leitura a ser feita sobre o modelo brasileiro de relações raciais. Lilia Schwarcz guarda um pleno conhecimento sobre o conjunto de estudos que versaram sobre as desigualdades raciais baseados nos indicadores quantitativos de ordem demográfica. A mesma autora também frisa as contribuições mais preocupadas com o aspecto político das relações raciais, tendo como eixo de análise a denúncia ao mito da democracia Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 252 racial. Porém, apesar do reconhecimento desta produção, Schwarcz igualmente destaca existirem outras tantas leituras mais direcionadas aos aspectos simbólicos e culturais, que transcendem o aspecto da geração dos indicadores demográficos, do processo de construção das identidades políticas ou aspecto do que seria a mera acusação do caráter ideológica do mito. “Nesse sentido, passados tantos anos, parece insuficiente ficar exclusivamente repisando um preconceito retroativo, ou delatando a existência de um ‘racismo cordial’. Demonstrar as falácias da democracia racial (que é de fato um mito), talvez seja tão importante quanto refletir sobre sua eficácia e permanência, que resiste ao descrédito teórico, já anunciado em finais dos anos 50” (SCHWARCZ, 1999:307). Desta forma, Schwarcz reconhece que a democracia racial, com todos os seus aspectos reportados às hierarquias e às desigualdades, seja efetivamente um mito. Contudo, de acordo com o enfoque desta pesquisadora, existiria um plano desta questão que seria irredutível aos indicadores demográficos e aos estudos políticos sobre a questão racial. Pode-se dizer serem três estes planos: i) as normas e padrões de convívio entre as pessoas de origens raciais, ou cores distintas que teimavam em prosseguir sendo amistosas não obstante tantas disparidades; ii) os próprios padrões de classificação racial local que, não obstante a rigidez dos sistemas classificatórios oficiais, apresentavam-se indelevelmente nuançados e irredutíveis às formas de denominação tanto proveniente do Estado (branco, preto, pardo, amarelo e indígena), quanto do discurso militante (negros e brancos) e; iii) a determinados planos da vida cultural, artística e religiosa, que sendo de evidente e assumida matriz africana, logravam realizar-se transcendendo quaisquer sortes de essencializações, ou seja, não se vinculavam às raças no seu sentido estrito de etnia e, tampouco, serviam como meio ou instrumento militante para a ação política no sentido da constituição de identidades coletivas das pessoas de uma determinada origem racial opostas às demais. Na abordagem de Schwarcz, ao contrário de Laraia, portanto, o campo de estudos das relações raciais no Brasil não poderia ser visto de uma forma puramente evolucionista. Dito de outra forma, a polêmica entre Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, não teria sido consumada com a vitória de um dos oponentes. “Parece que os encontramos na encruzilhada deixada por duas interpretações. Entre G. Freyre que ajudou a construir o mito e F. Fernandes que o desconstruiu, oscilamos bem no meio das duas representações. No Brasil convivem duas realidades absolutamente diversas: de um lado, a descoberta de um país profundamente mestiçado em suas crenças e costumes; de outro, o local de um racismo invisível e de uma hierarquia arraigada na intimidade” (Idem:312). Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 253 Portanto, de acordo com os enfoques de Schwarcz (op cit), e em um plano mais distante, de Peirano (1981), acompanhando o que ocorreria na vida real, haveria uma espécie de duplicidade epistemológica nas ciências sociais brasileiras no que tange ao estudo das relações raciais. Por um lado, teríamos os estudos baseados na matriz culturalista mais preocupados com os aspectos antropológicos do convívio entre pessoas de raças /cores distintas. Assim, este aporte se debruçaria sobre a capacidade do modelo brasileiro de relações raciais para perpetuar, pela via do assimilacionismo, formas amistosas e igualitárias de convívio entre os diferentes, bem como de produzir, desde esta cultura mestiça e ambígua, formas de produção artística, religiosa e cultural absolutamente criativas e versáteis. Por outro lado, existiriam os estudos fundados em uma perspectiva crítica (seja originados na Escola Paulista, seja baseado no roteiro de pesquisas da geração pós anos 1980) sobre a realidade racial brasileira, ancorados nas evidentes assimetrias sócio-raciais presentes em nosso país, ávidos em demonstrar suas incongruências, injustiças e incorreções. Ou seja, ambos os aportes seriam irredutíveis uns aos outros tendo em vista interpretarem distintos planos da vida social. Outra importante derivação deste debate encontra-se em entender esta dualidade epistemológica em seu sentido regional. Ou seja, nas regiões meridionais do país, mais modernas e apresentando uma maior proporção de brancos e descendentes de imigrantes europeus, as relações raciais entre negros e brancos tenderiam a ser mais duras. Já nas áreas setentrionais onde a presença negra e mestiça era mais significativa, especialmente no Brasil profundo das áreas mais tradicionais articuladas no entorno das lavouras da cana-de-açúcar, do fumo e do cacau, as relações raciais tenderiam a ser mais harmoniosas. Este tipo de leitura pode ser encontrado em diversos estudos sobre as relações raciais brasileiras englobando os mais diferentes autores como, entre outros, Donald Pierson, Roger Bastide, Franklin Frazier e Pierre Van der Berghe (C.f. GUIMARÃES, 1999). Tendo em vista esta reflexão, no estudo que segue será feita justamente uma releitura de algumas contribuições clássicas no interior do campo chamado de culturalista, e os respectivos modos de entendimento do funcionamento do modelo brasileiro de relações raciais. Este roteiro de estudos, em grande medida, representa um aprofundamento de uma perspectiva originalmente desenvolvida por Guimarães (Idem:89) que indicou existirem haver diversas similaridades entre o material coligido em campo por parte dos autores vinculados às Escolas Paulista e Baiana de estudos sobre as relações raciais. Segundo o mesmo autor, em ambas as Escolas teria sido possível evidenciar: i) reconhecimento dos estereótipos raciais e dos preconceitos de cor; ii) a presença de ditos e reditos racistas; iii) a presença de limites nas Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 254 formas de interação entre negros e brancos e; iv) dificuldade para a mobilidade social ascendente de negros e mestiços escuros. Assim, Guimarães apontou que o que realmente teria variado no interior daquelas respectivas tradições teria sido mais a interpretação dos dados do que propriamente os seus achados. Deste modo, com o presente estudo, nossa intenção é avançar nesta compreensão, procurando nos dedicar a um tema específico que reside no tema do processo de construção da estratificação sócio-racial. Assim, o presente estudo procurará entender quatro grandes ordens de questões: i) De que forma determinados autores clássicos no interior da matriz culturalista, que refletiram sobre o modelo brasileiro de relações raciais, entenderam o processo de construção das desigualdades sócio-raciais no nosso meio? Não haveria uma relação de causa e efeito entre o próprio modelo de relações raciais e o processo de construção das disparidades nas condições de vida entre brancos e negros no Brasil? ii) Quais seriam as principais lições trazidas a lume pelo campo culturalista para o entendimento do modo de funcionamento do padrão brasileiro de relações raciais, tendo em vista o tema da produção das assimetrias entre brancos e negros no Brasil? Quais seriam as contradições internas passíveis de serem localizados no interior das formulações vinculadas a este campo teórico? iii) A partir destas reflexões, como poderíamos entender teoricamente determinados sentidos positivados sobre o modelo brasileiro de relações raciais? Por que determinados autores, mesmo reconhecendo existir discriminações e assimetrias raciais em nosso meio prosseguem sendo tão otimistas em relação ao nosso modelo de relações raciais? Como este modelo se relaciona com as especificidades do próprio processo de modernização do Brasil e de que modo tal articulação atua como um elemento de justificativa do próprio modelo de relações raciais? iv) Até que ponto seria correto dizer que as compreensões críticas ao modelo brasileiro de relações raciais teriam dado pouca importância às dimensões da realidade social de natureza mais qualitativa? A hipótese central desta Tese, portanto, é a de que é apenas parcialmente verdadeira a idéia de que existiria uma duplicidade epistemológica nos estudos sobre o padrão brasileiro de relações raciais e a construção das assimetrias nas condições de existência entre brancos e Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 255 negros. Pretendemos mostrar, de um lado, que os estudos culturalistas clássicos não se limitaram a consagrar o Brasil como uma democracia racial, tendo revelado, mesmo que implicitamente, que os processos de construção social das desigualdades sócio-raciais eram ao menos em parte derivados da dinâmica do próprio modelo de contatos entre os grupos brasileiros de raça/cor. De outro lado, as tradições críticas ao modelo culturalista (tanto o aporte de Florestan Fernandes quanto os estudos baseadas em indicadores demográficos posteriores a 1980), nunca estiveram infensas aos aportes qualitativos, de diversas maneiras incorporando tais perspectivas no desenvolvimento de seus estudos. Metodologia do Trabalho Uma vez tendo sido apontados os objetivos desta Tese, gostaríamos agora de detalhar um pouco mais sua metodologia. Em primeiro lugar, cabe salientar que este estudo não está realizando uma problematização da antropologia como campo do conhecimento e tampouco das centenas de estudos etnográficos sobre a cultura negra realizados em nosso país. Neste sentido, teremos por preocupação central tão-somente compreender algumas obras clássicas de determinados autores culturalistas que refletiram sobre nosso modelo de relações raciais, contudo, dentro do tema da estratificação social da sociedade brasileira. Na verdade, tal como poderá ser visto, não dispensamos por inteiro determinadas contribuições que se basearam em pesquisas etnográficas. Entretanto, os poucos estudos desta natureza que foram incluídos na presente contribuição o foram de modo seletivo, isto é, desde algum tema que julgamos relevante para fins do argumento principal desta Tese. Em segundo lugar, é importante que de antemão expressemos o que estaremos entendendo por culturalismo. Por razão culturalista devem ser compreendidos os autores que fundamentaram suas pesquisas em estudos de comunidades, em etnografias, em estudos folclóricos ou em aspectos específicos da vida cultural, artística e religiosa de uma determinada região brasileira ou de todo o país, tendo partido do pressuposto teórico de que os fatores de ordem culturais e simbólicos guardam uma relação de autonomia, isto quando não de determinação, sobre os demais aspectos da vida social, especialmente os derivados do plano do mundo do sistema político e econômico. Por outro lado, o fato dos estudos culturalistas privilegiarem o aspecto da interação entre grupos humanos, vis-à-vis às compreensões de ordem estrutural, não significa que os autores ligados a este campo teórico, Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 256 em diferentes momentos, não tenham tido como eixo de análise as problemáticas mais diretamente reportadas às dimensões políticas e econômicas tais como o entendimento da formação das pirâmides de renda, a convergência entre as estratificações de classe e cor, os padrões reprodutivos e de nupcialidade e os processos de mobilidade ascendente. Na verdade, será justamente sobre a produção culturalista dedicada a este último conjunto de assuntos que nosso trabalho se preocupará em compreender e criticar. Do mesmo modo, sabemos que a razão culturalista teve seu desenvolvimento teórico alicerçado na própria evolução das ciências sociais no mundo Ocidental. Por isso, ao longo desta trajetória, estes estudos muitas vezes estiveram associados a interpretações essencialistas sobre os distintos aportes culturais. Desta feita, no interior desta tradição teórica, nem sempre a autonomia, quiçá determinação, da cultura sobre os demais planos da vida social implicou que tal esfera não estivesse, ela mesma, essencialmente causada por vetores de ordem natural (biológica, genética, etc). Neste sentido, os estudos provenientes da razão culturalista que estarão sendo analisados - salvo em alguns momentos que serão precisamente determinados -, não englobam aquelas contribuições que partiram do referencial racialista. Por outro lado, sabemos que o campo da antropologia possui uma espécie de divisão interna entre as perspectivas evolucionistas, que tem sua origem em Morgan, porém marcando fortemente outros aportes, como o culturalismo da Escola de Chicago, e as perspectivas relativistas, originadas nos estudos de Mauss, Malinowski e de Boas. Assim, no estudo da tradição culturalista em nosso país, podemos perceber que ambas as perspectivas, em compartilhando do mito da democracia racial (e da concepção de que formaríamos uma sociedade multiracial de classes), fizeram uma espécie de disputa, nem sempre visível, acerca da hegemonia da leitura das relações raciais no Brasil. De todo modo, a este respeito cabe salientar que na presente Tese nós não fizemos uma escolha por nenhuma das duas perspectivas. Ou antes, este trabalho perderia muito de sua densidade caso fizéssemos tal sorte de definição. Em terceiro lugar, o aspecto dos valores simbólicos também é muito importante de ser levado em consideração no nosso debate. Na verdade, por uma série de motivos que julgamos desnecessário deslindar no momento, a razão culturalista brasileira produziu um olhar comumente positivado sobre as relações raciais em nosso país. Deste modo, a razão culturalista em apreço neste estudo engloba os autores que não apenas portaram um determinado projeto teórico, mas também uma determinada perspectiva axiológica simpática sobre nossa realidade racial. Ou seja, o juízo de valor, ao menos parcialmente, positivado Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 257 destes autores sobre a realidade racial brasileira é parte intrínseca do próprio objeto de estudo. Por outro lado, de fato, na última parte de nosso trabalho listamos algumas contribuições que são evidentemente críticas ao modelo brasileiro de relações raciais. Porém, mesmo estes esforços foram escolhidos pontualmente por apresentarem uma determinada perspectiva de leitura, tradicionalmente entendida como não culturalista, e que justamente por este mesmo motivo, serão solidários com o conjunto de reflexões observadas ao longo desta Tese. Ou seja, queremos entender se, e de que modo, determinados autores críticos à razão culturalista brasileira, no que tange a reflexão sobre as relações raciais, incorporaram aspectos desta mesma formulação (ainda que depuradas dos excessos de otimismo sobre o modelo brasileiro de relações raciais) em suas análises. Vale salientar que apesar de nosso foco de estudo serem reflexões que tenderam a positivar nosso padrão de relacionamentos inter-raciais, vale salientar que em absoluto isto implicou em alguma sorte de visão pré-concebida em relação a este conjunto de autores. Muito pelo contrário, partimos do pressuposto que todos os autores a serem estudados ao longo dos próximos nove capítulos, pelos mais variados motivos, apresentaram notáveis contribuições para a compreensão da realidade brasileira e que mesmo o seu olhar positivado acerca da realidade dos contatos inter-raciais no Brasil não impediu que estes mesmos autores avançassem importantes conclusões sobre o seu objeto de pesquisa. Por esta razão, nosso estudo terá um caráter em grande medida exegético. Buscaremos entender os autores desde a lógica interna de seu próprio discurso e das respectivas matrizes teóricas que os informaram. Dito de outro modo, nosso esforço consistiu em realizar críticas internas ao argumento principal de cada teórico, não obstante, nunca olvidando que todas estas contribuições representaram estudos de grande relevância no interior do pensamento social brasileiro. Outro aspecto que deve mencionado é que grande parte das obras listadas para análise no presente estudo já é razoavelmente antiga. Quer dizer, antiga no caso de considerarmos que estudos realizados a algumas décadas atrás o sejam. Não obstante, temos pleno conhecimento de que ao trilharmos esta via, estaremos ingressando no perigoso terreno de veredas não virgens, onde tantos notáveis pesquisadores sociais já caminharam. Assim, no processo de realização deste estudo, não deixa de ser natural a angústia quanto ao risco de ouvirmos como crítica: c´est du déjà vu. A este respeito cabe a realização de três ressalvas: i) todos os autores em apreço foram analisados igualmente levando-se em consideração suas principais contribuições identificadas após pesquisa bibliográfica sobre o tema, muito embora saibamos que a amplitude do presente estudo não nos permita afirmar peremptoriamente que tenhamos esgotado toda a produção existente sobre cada um dos cientistas sociais cujas obras Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 258 foram analisadas; ii) procuramos sempre que possível incorporar as análises dos principais comentadores das obras dos cientistas sociais em apreço, tentando sistematizar estas críticas, apresentando adendos adicionais a este respeito apenas nos casos específicos onde julgávamos ter reflexões adicionais a prestar sobre o assunto; iii) a maior parte dos autores que está sendo analisado, e em diversos casos também seus comentadores, escreveu obras que seguramente podem ser tidas como clássicos no campo de nossa realidade social e racial. Este último fato, parcialmente, nos tranqüiliza quanto ao mister que nos propusemos, tendo em vista que, neste caso, podemos resgatar as quarta, quinta e sexta definição de Ítalo Calvino acerca do que vem a ser um livro clássico. “Toda leitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (CALVINO, 2000 [1991]:11). Em outro estudo já tivemos a oportunidade de debater o quanto o pensamento desenvolvimentista brasileiro, mesmo sem o evidenciar, estava marcado por uma determinada perspectiva antropológica que o tornava indelevelmente vinculado aos estudos culturalistas. Ou seja, naquele artigo deixamos sugerido que quando os economistas brasileiros (e o conjunto da elite social, política e econômica do país) passaram a mobilizar o referencial culturalista, estes se convenceram das reais chances de sucesso de reconfiguração produtiva do Brasil no sentido de se tornar um país industrializado. Ou seja, a razão culturalista, para além das análises de Peirano (op cit) acerca do nation-building à brasileira, teria permitido ao nosso país a fuga dos termos mais duros de um racialismo que nos condenaria, na divisão internacional (e racial) do trabalho, às funções meramente relacionadas ao setor primário. Assim, a incorporação do mito da democracia racial pela lógica desenvolvimentista efetivamente contribuiu para o crescimento das forças produtivas e a modernização do país. Todavia, por outro lado, este uso instrumental do mito, por parte dos formuladores das políticas econômicas e sociais, ao ter se baseado em um aporte inerentemente conservador em termos do entendimento do modo de funcionamento de nossas estruturas sócio-raciais, igualmente teria contribuído para a confirmação de um padrão de desenvolvimento econômico pronunciadamente excludente e autoritário (C.f. PAIXÃO, 2005a). Sem embargo, naquele artigo encontramos suficientes elementos para apontarmos que, por trás de determinadas compreensões existentes no interior do pensamento econômico brasileiro, havia um determinado discurso cultural implícito, conquanto raramente revelado. Assim, não obstante termos lançado um olhar crítico sobre este percurso, não deixamos de reconhecer que os pontos de contato entre o pensamento econômico e a razão culturalista Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 259 eram efetivos e deviam ser levados na devida consideração. De certo modo, no presente esforço, estamos dando curso àquela reflexão anterior. Ou seja, temos pleno conhecimento da importância dos indicadores demográficos no sentido da construção, tanto de análises cientificamente válidas, como de intervenções por parte do poder público e da sociedade civil. Todavia, é preciso reconhecer que não há uma empiria absoluta ou pura que levem à realização destas informações. Pelo contrário, consideramos que por trás dos indicadores sociais existe uma determinada teoria que remanesce implícita, bem como uma determinada prática social que, para além de suas determinações de ordem estrutural, igualmente brota da vida cotidiana. Assim, ao menos parcialmente, a dinâmica assumida pelas relações sócio- raciais no dia-a-dia acaba igualmente sendo responsável pelo desenho final que os índices irão assumir. Por este motivo, julgamos tão relevante e pertinente recuperarmos os elos entre os determinantes histórico-estrutural da realidade, o estudos dos indicadores sociais, e os fatos que ocorrem no plano microsocial. E, decerto, nesta última seara as mais profícuas contribuições tenderão a vir justamente dos estudos que partem da perspectiva sócio-cultural. A presente Tese, além desta Introdução e de uma conclusão, estará dividia em três partes que contém ao todo nove capítulos. A primeira parte está divida em dois capítulos. No primeiro analisamos algumas obras do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, especialmente a sua Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil. No segundo capítulo estudaremos os estudos de comunidade realizados pelos pesquisadores norte-americanos vinculados à Escola de Chicago (Donald Pierson, Charles Wagley, William Hutchenson, Marvin Harris Benjamin Zimmerman, Ruth Landes, Franklin Frazier e Melville Herskovits), sobre as relações raciais na Bahia. A segunda parte de nosso estudo, está divida em quatro capítulos. No terceiro capítulo estudamos de modo comparativo aspectos das Escolas baiana e pernambucana de estudo sobre o negro, bem como as obras dos médicos-antropólogos Thales de Azevedo e René Ribeiro. No quarto capítulo nos debruçamos sobre a obra do sociólogo paulista Oracy Nogueira. No quinto capítulo enfrentamos o desafio de entender os estudos do antropólogo fluminense Roberto DaMatta. Finalmente no sexto capítulo, último da segunda parte, realizamos uma reflexão sobre A Lenda da Modernidade Encantada, momento em que nos detemos sobre os motivos pelos quais a razão culturalista tende a positivar o modelo brasileiro de relações raciais, não obstante todas as reconhecidas assimetrias verificadas em nosso meio. Na terceira parte da Tese estudaremos dois contrapontos à tradição culturalista. O primeiro contraponto envolve um estudo sobre as reflexões de Florestan Fernandes – e mais secundariamente de Roger Bastide - sobre as relações raciais em nosso país. O segundo Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 260 contraponto envolve uma análise sobre a matriz discursiva que toma corpo a partir dos anos 1980, a partir dos estudos pioneiros de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva. Na verdade, para facilitar a exposição dos nossos argumentos, a compreensão deste último tema será feita no oitavo e no nono capítulo. No oitavo capítulo será realizada uma reflexão acerca de algumas influências teóricas culturalistas contidas no processo de construção do argumento destes autores. O capítulo nove estará baseado nos microdados da amostra do Censo Demográfico de 1980, 1991 e 2000, do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), e em dois Suplementos da Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (PNAD), de 1988 e de 1998. Neste momento desenvolveremos de modo empírico uma questão que remanesce nos estudos das desigualdades raciais brasileiras acerca do perfil dos indicadores demográficos dos pretos e pardos. Finalmente, na conclusão será realizada uma reflexão geral sobre o conjunto de estudos analisados ao longo deste trabalho. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 261 CAPÍTULO 1 O Luxo dos Antagonismos: Gilberto Freyre e o projeto de modernização conservadora do Brasil. “Pobre gosta de luxo; Quem gosta de miséria é intelectual” (Joãozinho Trinta) 1.1. Introdução O objetivo do presente capítulo é analisar a obra de Gilberto Freyre tendo como base as transformações vividas pela sociedade brasileira na sua transição para a modernidade. Mais especificamente pretendemos compreender as derivações destas mudanças sobre as formas de relacionamentos entre brancos e negros no Brasil. Uma vez indicado o problema a ser tratado, torna-se necessário apontar o caminho a ser trilhado. Tal questão não pode ser tomada como um mero detalhe. A obra de Gilberto Freyre foi muito vasta, tendo sido composta por 85 livros (quase um livro por ano de vida do autor, morto em 1987 aos 87 anos de idade) e 65 opúsculos2. Como o objetivo da presente tese não é fazer um exaustivo tratado sobre o autor, sabemos que nos limites de um capítulo teremos de optar por uma determinada via que simplifique, e viabilize, nosso esforço. O presente capítulo, além desta introdução, se divide em mais quatro partes. Na segunda, fazemos uma breve releitura do clássico, Casa Grande & Senzala e, em menor medida, Vida Social no Brasil nos Meados do Século XIX, buscando captar os principais traços da antiga sociedade agrária e senhorial para Gilberto Freyre e o motivo pelo qual, para o autor, estes aspectos seriam fundamentais para a compreensão do Brasil moderno. Na terceira parte, estudamos o início do processo de dissolução desta sociedade e seus efeitos sobre as relações raciais no Brasil. A principal obra de referência para esta parte será o livro Sobrados e Mocambos, segundo livro da trilogia da História da Sociedade Patriarcal no Brasil3. Além deste estudo, nesta parte também foram mobilizados, os fundamentais, Nordeste e o Manifesto Regionalista. Na quarta parte, estudamos o problema da democracia racial brasileira no contexto da revolução passiva no Brasil que se aprofunda ao longo do 2 Esta contagem foi feita baseada na 34ª edição do livro Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, datada de 1998, onze anos após seu falecimento. 3 Na verdade, a trilogia deveria ter sido uma tetralogia sendo o quarto livro, que não chegou a ser escrito, Jazigos & Covas Rasas. O projeto deste livro, segundo palavras do próprio autor “cobrirá o mais possível, como estudo de rituais de sepultamento e da influência de mortos sobre vivos” (Freyre, 2000 [1936]). Segundo Vamireh Chacon (1993:305) este projeto não se concretizou, “em parte por estranhas premonições”. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 262 século XX. Nesta parte, além das obras anteriores, mobilizamos Ordem e Progresso (livro que conclui a trilogia); Novo Mundo nos Trópicos e Além do Apenas Moderno. Finalmente na quinta parte, conclusiva, é feita uma avaliação das conseqüências da aporia freyriana - sobre os impasses derivados do processo de modernização conservadora no Brasil - para o atual debate sobre as relações raciais em nosso país4. 1.2. Casa Grande & Senzala e a invenção de um certo Brasil 1.2.1. O Método e o Mito Casa Grande & Senzala propõe um mito de fundação da sociedade brasileira. Tal como nas palavras de Rugai Bastos (1986:274) “Gilberto Freyre empreende uma abordagem da realidade social – a empatia – que lhe permita participar de vidas simbólicas onde se encarnam de modo mais típico as idealizações de uma época ou de uma cultura: o mito. Trabalhar com o mito significa para ele ultrapassar o nível apenas racional e objetivo e alcançar as dimensões subjetivas da análise”. O mito, assim, transcende o histórico cronológico imbricando-se com uma poderosa imaginação sociológica capaz de captar em algum lugar do passado os elementos de permanência daquela sociedade, capazes de resistir aos efeitos corrosivos do tempo (ALBUQUERQUE, 2000). Apesar do tom valorativo aos afrodescendentes e indígenas; - vistos “no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural” (FREYRE, 1998 [1933]: xlvii) - o verdadeiro herói do sociólogo pernambucano vem a ser o colonizador português; comandante da montagem da civilização brasileira. Sabe-se que, para Gilberto Freyre, o caráter do povo brasileiro foi sendo forjado lentamente ao longo da história no interior das casas-grandes. Por outro lado, o Brasil teve de ser criado em um meio naturalmente hostil à civilização em pleno meio tropical. Desta forma, longe de ser uma terra em que tudo cresce e floresce, o Brasil era um território com imensas 4 Naturalmente, essa opção metodológica ainda apresenta sérios limites tendo em vista que, evidentemente, a maior parte da produção de Gilberto Freyre não foi mobilizada. Sem embargo, consideramos que esta lacuna pôde ser sanada a contento, seja com a mobilização da obra de alguns de seus principais comentadores (entre outros, MOREIRA LEITE, 1976 [1954]; AMADO ET AL., 1963; MEDEIROS, 1984; RUGAI BASTOS, 1986, 2001 e 2002; SANTOS, 1990, COSTA LIMA, 1989; PAULA, 1990; D´ANDREA, 1992; BENZAQUEM DE ARAÚJO, 1994; SOUZA, 2000; SALLUM JR., 2002), seja pelo fato de que, felizmente a vastidão da obra do sociólogo pernambucano não o impediu de ter uma coerência muito grande em termos de suas concepções de mundo e de sua agenda de reflexões. Esta visão pode ser confirmada por Paula (1990:3) segundo a qual a obra gilbertiana constituí um projeto único, “um pensamento linear, no sentido não apresentar ruptura entre suas partes”. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 263 dificuldades para ser conquistado e colonizado pelo colonizador europeu. O autor também salienta que, na época, Portugal foi o primeiro país a “deslocar a base da colonização tropical da pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal – o ouro, a prata, a madeira, o âmbar ou o marfim – para a de criação local de riqueza” (Idem: 17). Esta realidade ilustra quanto houve de heróico no processo de colonização do Brasil pelo colono português. Assim, segundo o mesmo autor: “o certo é que os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e com caráter de permanência” (Ibidem: 12). O lado épico contido no processo de ocupação do Brasil pelos portugueses nos leva diretamente à análise sobre o caráter do próprio colonizador. Segundo Freyre, tanto a história, como a geografia, de Portugal teriam tornado seu povo notadamente mestiço. Assim, os portugueses, filhos de variadas influências, teriam menos motivos, do ponto de vista étnico e racial, para guardarem orgulhos quanto à pureza de sua origem. Do mesmo modo, as próprias transições sociais operadas em Portugal ao longo do século XIV acarretaram o nascimento de sua precoce burguesia (gente originada do povo, judeus, mouros, etc), que solapando economicamente a base de prestígio dos aristocratas, logo acabaria se mesclando com esta classe, impedindo que os nobres deste país tivessem “se ouriçado dos mesmos duros preconceitos que nos países de formação feudal” (Ibidem:209). Estas características históricas, por sua vez, seriam solidárias com três peculiaridades do colonizador português: mobilidade, adaptabilidade e, principalmente, miscibilidade. Esta última qualidade residiria na capacidade, em grande medida herdada do legado cultural mouro, que o lusitano teria para o contato íntimo, especialmente o sexual, para com outros grupos raciais, e que, no caso brasileiro, vieram a ser as índias e as negras. Assim, segundo os termos de Freyre, os portugueses “além de menos ardentes na ortodoxia que os espanhóis” eram “menos estreitos que os ingleses nos preconceitos de cor e na moral cristã” (Ibidem: 89). O autor subentende nos outros povos, de origem racial mais pura e de hábitos religiosos, morais e afetivos mais rígidos, uma incapacidade quase congênita para este contato. Isto faria com que o intercurso sexual, e, por conseguinte, a mestiçagem, fosse menos freqüente nas sociedades não portuguesas. Uma feliz coincidência de ordem secular também teria contribuído para que as sociedades de origem lusitana tivessem um caráter mais amistoso do que as sociedades originadas através da colonização por outros povos: trata-se do catolicismo, tal qual praticado primeiramente em Portugal, e posteriormente, no Brasil. Não que o catolicismo português estivesse livre de um caráter pronunciadamente sectário. Segundo Gilberto Freyre “temia-se Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 264 no adventício acatólico o inimigo político capaz de quebrar ou de enfraquecer aquela solidariedade que em Portugal se desenvolvera junto com a religião Católica”. Todavia, uma vez comprovando-se, ou não havendo motivo para se suspeitar, da fé de uma pessoa, especialmente a estrangeira, as portas da sociabilidade estariam abertas para a mesma, independentemente de suas origens étnicas ou raciais: “o perigo não estava no estrangeiro nem no indivíduo disgênico ou cacogênico, mas no herege”. Deste modo, para o mesmo autor “o catolicismo foi o cimento da nossa unidade” significando ser esta religião, concomitantemente, básica na construção do padrão cultural assimilacionista (Ibidem: 29- 30)5. O catolicismo luso-brasileiro, devido à influência moura, também teria sido marcado pelo seu caráter pronunciadamente doméstico e sensual, o que era solidário com o caráter já apontado da miscibilidade do lusitano. O conjunto de características assinaladas se retro-alimentaria apontando todos os seus componentes para o mesmo caminho, qual seja, a plasticidade do povo português que lhe permitia suportar territórios mesologicamente hostis e a sua ampla capacidade em assimilar grupos humanos, étnicos e racialmente distintos. Desta forma, a força da obra Casa Grande & Senzala reside no fato de ter sido a primeira obra escrita nos marcos do Brasil moderno, isto é, a partir dos anos 1930, que buscou narrar, de uma forma globalmente positiva, a odisséia da constituição da sociedade brasileira. Uma odisséia, decerto prosaica, uma vez fundada nos fatos menores da vida comum. Todavia, uma caminhada capaz de gerar, aos olhos do sociólogo, um orgulho todo próprio aos descendentes daqueles que a trilharam posto ter sido um feito que poucos povos lograram realizar. O desenvolvimento de uma civilização nos trópicos. 1.2.2. É Melhor Ser Alegre Que Ser Triste. Freyre reconhece que, do ponto de vista histórico-cronológico, a sociedade brasileira nasceu do contato do europeu português com o indígena. Porém, esta realidade não deve 5 Souza (2000:223) polemiza com Benzaquém de Araújo sobre o elemento central de proximidade que singularizaria a sociedade colonial brasileira. Para Jessé de Souza, Gilberto Freyre teria conferido, na verdade, maior importância à influência moura que a cristã propriamente dita na construção das nossas singularidades culturais. Apesar da validade das formulações deste autor, a partir da leitura do próprio Gilberto Freyre, acreditamos que somente o legado mouro não teria capacidade de dar conta das singularidades do catolicismo português, dentre outros motivos pelos próprios fatores políticos relacionados à precoce unificação do Estado nacional português tal como será visto logo adiante que foi fundamental para a superação da xenofobia naquela nação. Assim, a influência moura estaria mais relacionada ao aspecto do lirismo e nos traços de familismo inatos ao catolicismo português do que ao conjunto das influências por ele exercidas sobre a sociedade colonial brasileira. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 265 esconder um elemento fundamental da perspectiva sociológica de Freyre, qual seja, o nervo central onde girou a trama e o drama da sociedade colonial. Estas se articularam em torno de sua principal antinomia, o binômio senhor luso-descendente e o escravo africano. No que diz respeito à tradicional compreensão racialista, que considerava a raça negra biologicamente inferior e incapacitada para atingir à civilização, Gilberto Freyre fará a defesa de uma perspectiva alternativa6. Desta maneira, mobilizando o aporte culturalista aprendido durante sua estada nos EUA com seu mestre Franz Boas, o autor buscou desacreditar as teses de que os negros pudessem ser inferiores aos brancos em termos físicos e mentais. “O depoimento dos antropólogos revela nos negros traços de capacidade mental nada inferior às outras raças: ´considerável iniciativa pessoal,talento de organização, poder de imaginação, aptidão técnica e econômica´, diz-nos o Professor Boas” (Ibidem:296). O que tornou os negros africanos tão importantes no processo de colonização do Brasil foi o fato de compartilharem, com o português, uma de suas qualidades fundamentais que era a sua adaptabilidade a sociedades complexas e estáveis. Ou seja, se pela sua mobilidade e valentia, os indígenas foram úteis aos colonizadores portuguesas no começo do processo de ocupação do território brasileiro, tais características, associadas ao seu caráter orgulhoso, duro, inadaptável, revelariam-se inoportunas quando do processo de consolidação da nova sociedade; tal como veio a ser o caso da civilização do açúcar. Já os negros, compartilhando com os lusitanos a qualidade da aclimatabilidade, tornavam-se aptos não somente para a sobrevivência nos trópicos, mas, também, às monótonas necessidades de uma vida sedentária7. Deste modo, para o autor “a introversão do índio, em contraste com a extroversão do negro da África, pode-se verificar a qualquer momento no fácil laboratório, que para experiências deste gênero, é o Brasil” (Ibidem:288). Com a força de expressão que lhe é peculiar, nosso autor, em Casa Grande & Senzala, afirmou que todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro traz na alma, quando não na alma e no corpo a sombra ou pelo menos a pinta do indígena ou do negro (Ibidem:283). No caso da influência negra, esta se faria sentir nos mais deliciosos momentos da vida colonial: 6 Não se negam diferenças mentais entre brancos e negros. Mas até que ponto essas diferenças representam aptidões inatas ou especializações devidas ao ambiente ou às circunstâncias econômicas de cultura é problema dificílimo de apurar (FREYRE, 1998 [1933]:):297). 7 Gilberto Freyre, deste modo, concorda apenas parcialmente com o diagnóstico de Paulo Prado segundo o qual o povo brasileiro seria produto de uma triste tríplice matriz. Na verdade esta tristeza seria uma qualidade dos sorumbáticos indígenas e dos melancólicos portugueses, mas não dos alegres, vivazes e loquazes negros, verdadeiros filhos dos trópicos, portadores da qualidade dionisíaca que se tornariam distintivas no modo de ser do brasileiro. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 266 “Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso companheiro de brinquedo” (FREYRE 1998 [1933]: 283). O que esta passagem nos revela é que os negros, especialmente as mulheres, tiveram um papel fundamental na formação cultural do país através do exercício das tarefas como ama-de-leite, babá, cozinheira, contadora de histórias, companheira, feiticeira, amante. Unificando todas estas funções o fato de todas serem realizadas no interior do espaço doméstico, mais especificamente, no interior das casas-grandes. Assim, na perspectiva do autor, para um povo plástico como o português, o ideal era justamente uma outra gente hospitaleira, bondosa e amiga como a africana. Tal como inicialmente coubera às indígenas, a mulher negra também teria sido um elemento de aproximação de contrários. De suavização de antagonismos. De comunicação entre opostos culturais que, de outro modo, permaneceriam isolados em seus mundos tão diferentes de senhor e de escravo8. Deste modo, seja da lama de gente que fecundou os canaviais e cafezais, seja das pretas boas ou sensuais das casas-grandes, o fato é que o negro, ao contrário do indígena, somou-se definitivamente à sociedade patriarcal colonial que se formara. Esta incrível adaptabilidade do negro ao clima e, ao regime escravista, levou Gilberto Freyre a considerar que “tais contrastes de disposição psíquica e de adaptação talvez biológica ao clima quente explicam em parte ter sido o negro na América Portuguesa o maior e mais plástico colaborador do branco na obra de colonização agrária” (Ibidem: 289). Já em Nordeste, o negro escravizado é pura e simplesmente chamado de colono. Assim, chegamos ao quadro de uma sociedade em que os rigores da escravidão puderam ser contornados pelo óleo dissolvente do contato íntimo e os opostos, não obstante os seus múltiplos antagonismos, puderam trabalhar irmanados em um ideal comum de 8 Uma leitura clássica sobre o significado da acomodação dos antagonismos na obra de Gilberto Freyre pode ser encontrada em Benzaquem de Araújo (1994). Vale salientar que nesta contribuição este autor reconstrói o tema do significado da escravidão benigna no interior dos estudos do sociólogo pernambucano, passando a salientar menos o seu suposto aspecto pacífico e mais o aspecto relacionado ao jogo de interações culturais e afetivas entre os senhores e os seus escravos, o que incluía uma elevada carga de violência e sadismo dos dominadores sobre os seus subordinados. Souza (2000), igualmente desenvolveu sua leitura sobre a obra de Gilberto Freyre levando em conta estes aspectos relacionais que formariam a base do modelo brasileiro de relações raciais. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 267 colonização das vastas terras brasileiras. Aqui, igualmente, aportamos no cerne de uma longa tradição cultural que será conhecida por assimilacionismo. Ou seja, a assimilação dos diferentes em uma mesma totalidade, muito embora dentro de um cenário pronunciadamente hierarquizado. 1.2.3. Família Patriarcal Para Freyre a “casa-grande, embora associada ao engenho de cana, ao patriarcalismo nortista, não se deve considerar expressão exclusiva do açúcar, mas da monocultura escravocrata e latifundiária em geral: criou-a no Sul o café tão brasileiro como no Norte o açúcar” (Ibidem:lxiii). Deste modo, pode-se depreender desta passagem que, para o autor, o complexo casa-grande foi uma espécie de tipo-ideal, isto é, o modelo mais bem acabado do perfil da sociedade colonial, sendo as outras regiões do país, tão-somente, um espelho mais ou menos aproximado do que ocorria naquele espaço. Por este motivo Freyre chamará, em Novo Mundo nos Trópicos, os senhores de engenhos e fazendas de fundadores verticais do Brasil. Por outra via, apesar da experiência dos bandeirantes, fundadores horizontais da nação, ter quase apontado para um outro modelo de sociedade, baseada na economia de subsistência e na mobilidade espacial de seus componentes, segundo Gilberto Freyre, ao contrário de Buarque de Holanda (1999 [1936]), estes atores históricos não possuíam a mesma qualidade da civilização do açúcar. Ou seja, eram por demais móveis para gerarem uma civilização. Esta somente poderia ser inventada onde houvesse: i) estabilidade nos modos de vida permitindo a constituição de hábitos e costumes; ii) grau de desenvolvimento material que permitisse o desenvolvimento de uma cultura complexa baseada na diferenciação social, ou na fundação de hierarquias9. Conquanto o complexo casa-grande fosse organizado de acordo com a ótica da busca do retorno econômico, esta sorte de empreendimento também vinculava-se com propósitos não lucrativos. Assim, para o autor, o complexo rural articulado em torno da casa-grande guardava o caráter de uma totalidade: “A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o bangüê, a 9 Depreende-se da leitura de Casa Grande& Senzala que na sociedade originada pelos bandeirantes, fundadores horizontais do Brasil, esta maior complexidade da sociedade (que implicava sua divisão em classes sociais distintas) somente viria a ocorrer a partir do caso do ciclo do ouro. Todavia, esta sociedade era predominantemente urbana dimensão que somente foi analisada pelo autor em Sobrados & Mocambos, segundo livro da trilogia da História da Sociedade Patriarcal no Brasil. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 268 rede o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater familias, culto aos mortos, etc); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa (o ‘tigre’, a touceira de assento, o lava-pés); de política (o compadrismo). Foi ainda fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os velhos e as viúvas, recolhendo órfãos. Desse patriarcalismo absorvente dos tempos coloniais a casa-grande do engenho Noruega, em Pernambuco, cheio de salas, quartos, corredores, duas cozinhas de convento, despensa, capela, puxadas parece-me expressão sincera e honesta” (FREYRE 1998 [1933]:liii). A unidade familiar descrita por Freyre reporta-se a um clã comandado pelo chefe da família, voluptuoso, do alto de varanda, todavia, sempre muito cioso de suas prerrogativas e sempre capacitado para defendê-las. Assim, dizia Freyre, “é verdade que estes homens moles, de mãos de mulher; amigos exagerados da rede; voluptuosos do ócio; aristocratas com vergonha de ter pernas e pés para andar e pisar no chão como qualquer escravo ou plebeu – souberam ser duros e valentes em momentos de perigo. Souberam empunhar espadas e repelir estrangeiros afoitos; defender-se de bugres; expulsar da colônia capitães-generais de Sua Majestade” (FREYRE, 1998 [1933]:429). Para Gilberto Freyre, o modelo de organização familiar da casa-grande em muito lembrava o modelo de família oriental. No entorno do senhor de engenho, patriarca do clã, se encontravam sua esposa (na verdade várias, pois além da elevada taxa de mortalidade materna e dos novos casamentos oficiais que daí se seguiam, havia as mucamas na maioria das vezes odaliscas em seu harém), seus inúmeros filhos e filhas, demais parentes, agregados, o padre da capela; os escravos e escravas domésticos e seus respectivos filhos, muitos, outrossim, descendentes naturais do senhor de engenho. Mais distantes, no limiar dos domínios da família extensa, vinham os escravos do eito. Sobre estes, não obstante a dureza das condições de trabalho, nosso autor dirá que se beneficiavam por uma melhor alimentação mais saudável, regular e farta (C.f. FREYRE, 1977 [1922])10. Não obstante, sabe-se que nesta família o pai guarda um direito de vida e morte sobre seus membros. De igual maneira, este líder guardava relações de compadrio, ou inimizade, com outros senhores de engenho, sendo elevada a taxa de casamentos endogâmicos no interior das famílias, ou entre clusters de famílias aliadas. A casa-grande, deste modo, abrigava um tipo de família, ampliada, distante do modelo de família burguesa: nuclear monogâmica; portando uma moral ascética adequada ao ritmo dos negócios privados e da acumulação capitalista e, subordinada à regulação pública através da figura do Estado. 10 Para uma análise crítica da ausência, na obra de Freyre, de uma reflexão sobre as relações de exploração dos escravos nos eitos de trabalho, ver Medeiros (1984). Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 269 O próprio sociólogo pernambucano reconheceria que “não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime”. (FREYRE 1998 [1933]:316 e 372). Esta situação se agravaria pelo fato de se tratarem de colonizadores portugueses, famigerados pelo fato de se deliciarem em conversar safadeza, provindo de um local onde o erotismo grosso, plebe, estava presente em todas as classes (Idem: 251-252). Portanto, transposto para o ambiente brasileiro, a escravidão serviria como um excitante adicional da libido portuguesa e brasileira. Assim, “o que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhá-moço. Desejo não: ordem” (Ibidem 372). Daí, surgiram outras conseqüências: “Nesse período é que sobre o filho de família escravocrata no Brasil agiam influências sociais – a sua condição de senhor cercado de escravos e animais dóceis – induzindo-o à bestialidade e ao sadismo. (...) Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários – tantas vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho do bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no puro e simples gosto do mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho” (FREYRE: 1998 [1933]:51) Por motivos de sexo é que também decorreram outros males que comprometeram a eugenia de nosso povo. Por um lado, a sífilis, que disseminada em meio à tanta perversão sexual, sempre fez o que quis no Brasil patriarcal (Idem: 318). Por outro lado, a violência dos patriarcas que também se expressava contra suas mulheres e filhos legítimos, demonstrando que o sadismo dos senhores de engenho, conquanto afetasse prioritariamente os escravos, englobava todos os membros daquela sociedade, inclusive os futuros membros das classes dominantes (Ibidem: 420-421; SOUZA, 2000:230-231). Também eram extremamente rudes as reações das senhoras de engenho que agiam motivadas por ciúme ou por outros caprichos. “Não são dois nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho contra escravos inermes. Sinhás-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras que espatifavam a salto de botina dentadura de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancara as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma série de judiarias” (FREYRE, 1998 [1933]:337). Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 270 O sociólogo pernambucano também relatou que “não foi toda de alegria a vida dos negros, escravos dos ioiós e das iaiás brancas. Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de muitos. O banzo – a saudade da África. Houve os que de tão banzeiros ficaram lesos, idiotas. Não morreram: mas ficaram penando. E sem achar gosto na vida normal – entregando-se a excessos, abusando da aguardente, da maconha, masturbando-se” (Idem: 464). Estas passagens, deste modo, ilustram que Gilberto Freyre não escondeu a natureza perversa e toda a carga de sofrimentos enfrentados pelos escravos africanos no Brasil em seu contato com o mundo dos senhores de engenho. Contudo, paradoxalmente, para Gilberto Freyre, não obstante seus tantos defeitos, as relações sociais escravistas em nosso país foram marcadas por seu aspecto essencialmente benigno. “na verdade, a escravidão no Brasil agrário-patriarcal pouco teve de cruel. O escravo brasileiro levava, nos meados do século XIX, vida quase de anjo, se compararmos sua sorte com a dos operários ingleses, ou mesmo com a dos operários do continente europeu, dos mesmos meados do século passado. Sua vida – tudo o indica – era bem menos penosa que a dos escravos nas minas da América Espanhola e nas plantações, quando mais industriais do que patriarcais, da América Inglesa e Protestante” (FREYRE, 1977 [1922]:65) 11. Como, enfim, entender este paradoxo? Na verdade, Gilberto Freyre concorda somente de modo superficial com a condenação puritana e moralista à escravidão contida na perspectiva liberal clássica. Assim, quando o sociólogo pensa na moralidade do sistema escravista, inclusive no plano sexual, existem cinco aspectos que devem ser destacados: i) não pode ser dito que a crueldade do senhor, em Gilberto Freyre, tenha se dado totalmente na ausência de uma certa cumplicidade por parte dos grupos dominados. De fato, o autor reconhece que isto teria sido uma das seqüelas do sistema escravista. Porém, de um modo ou de outro, o sadismo do senhor foi correspondido, embora não em todos os casos, com o masoquismo do escravo; ii) a moralidade ficava comprometida apenas no plano afetivo (desejos, volições, taras, ciúmes, invejas, saudades etc), e mesmo assim, quase sempre, no seu sentido estritamente amoroso e sexual não comprometendo o conjunto das práticas sociais entre senhores e escravos; iii) esta condenação 11 Não que Gilberto Freyre tivesse chegado a defender a escravidão em si, atitude que não está explicitamente presente em nenhuma passagem de Casa-Grande & Senzala. A este respeito Antônio Callado dirias que “uma das críticas – razoáveis ou não – que se tem feito a Freyre vem do fato de parecer ele dar mostras de uma certa saudade dos ‘bons tempos’ do regime servil. Isso é sem dúvida uma injustiça para com o escritor de Casa- Grande & Senzala, já que o que lhe interessa são os traços e as sobrevivências culturais e, em sua apaixonada preocupação com estes mantém, em relação aos aspectos éticos do seu tema, um alheamento um tanto penoso, a somewhat painful detachment” (CALLADO, 1962: 107) Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 271 moral somente seria válida considerando-se como definitivo o conjunto de atitudes morais e sexuais dos protestantes, recusando-se a ver que esta depravação poderia ter mecanismos de compensação entre os assimétricos parceiros deste jogo; iv) as taras dos patriarcas e seu domínio sobre as negras e indígenas escravizadas teriam sido mais que compensadas pela miscigenação, fator de aproximação de pólos sócio-raciais distintos e gerador de um povo vigorosamente mestiço; v) a mestiçagem e o hibridismo de nosso sistema social teriam gerado um legado cultural igualmente plástico. Tal como diria o autor “(a) força, ou antes, a potencialidade da cultura brasileira parece-me residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados; o caso dos pronomes sirva de exemplo. Seguirmos só o chamado ‘uso português’, considerando ilegítimo o ‘uso brasileiro’ seria absurdo. Seria sufocarmos, ou pelo menos abafarmos metade de nossa vida emotiva e das nossas necessidades sentimentais, e até de inteligência, que só se encontram expressão justa no ‘me dê’ e ‘me diga’. Seria ficarmos com um lado morto; exprimindo só metade de nós mesmos. Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex- senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completarmos num todo, não será com o sacrifício de um elemento ao outro” (Idem:335)12. Para Freyre, portanto, se as relações sexuais entre os portugueses e as mulheres indígenas e negras subordinadas foram marcadas pelo signo da assimetria, da violência, ou mesmo da bestialidade, o fato delas terem existido, em si, já deveria ser considerado como um fator positivo, tendo em vista que tais contatos assinalariam uma abertura, exclusiva do colonizador português, para o contato e a troca de experiências culturais. Tal como relatado na leitura já clássica de Benzaquém de Araújo: “Nesse sentido, a degradação contida na convivência com aquelas desmedidas entidades está longe de ter um significado apenas negativo, envolvendo também a familiaridade, festividade e, abundância. Ora, o relativo elogio que Gilberto fez à loucura em Casa Grande & Senzala garante que a hybris também esteja presente no que rebaixa quanto no que redime a vida social; na violência e no despotismo; do mesmo modo que na intimidade e na confraternização. Assim, ainda que imprimisse uma marca prejudicial na natureza tropical; coalhando-a de vermes, no regime alimentar da colônia, tornando-a vítima do maior desequilíbrio que se possa imaginar, e na própria atividade sexual, transformando-a através da sífilis que ela propagava e do sadismo que era exercido, em um vínculo de sofrimento, deformação e morte, o domínio do excesso vai permitir que a afirmação daqueles antagonismos seja perfeitamente compatível com um grau quase inusitado de proximidade, recobrindo de 12 Trecho de Casa grande & Senzala também citado por Benzaquem de Araújo (op cit). Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil 272 um colorido, de um ethos particular a senhorial experiência da casa- grande” (BENZAQUÉM DE ARAÚJO, op cit:72-73). Deste modo, Freyre entende que, nos outros espaços de colonização européia, em especial os promovidos pelos ingleses, tal processo não tenha ocorrido fazendo com que os europeus ou tenham simplesmente exterminado os outros povos (em termos físicos e/ou culturais, de todo modo, desprezando suas contribuições) ou, no caso de tê-los escravizado; conservando distâncias instransponíveis entre as distintas etnias13. Assim, completa-se o quadro moral da escravidão brasileira em Gilberto Freyre. Com toda a sua carga de brutalidade, ela favoreceu o convívio, e não a inimizade letal, entre os pólos antagônicos. Assim, Freyre considerou que a excessiva lubricidade do colonizador português, comparativamente ao rígido moralismo sexual puritano, tinha uma maior capacidade de adensamento afetivo das relações humanas. Desta forma, a despeito da perda em termos da sinceridade do fervor religioso, o lusitano era mais plástico, ou seja, mais tolerante quanto aos pecados da carne – conquanto fossem devidamente expiados em um confessionário – e; assim, capacitado a abrigar em um mesmo conjunto social seres humanos de origens pronunciadamente distintas. De resto, para Freyre, conquanto a escravidão tenha sido um sistema eticamente impuro, esta forma de exploração do trabalho humano assumiu no Brasil um caráter simplesmente inevitável: “tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização do Brasil pelo europeu. Só a casa-grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime escravo” (FREYRE 1998 [1933]:244). Assim, o colonizador português, muito embora tão-somente perseguisse os próprios interesses e fosse um depravado sexual, produto de sua especial plasticidade, logrou realizar uma tarefa positiva. Dentro da lógica de Gilberto Freyre, 13 Todavia, até que ponto esta obra teria sido um talento específico do português ou um produto do sistema escravista e, usando a síntese de Paula (op cit), de seu estilo poligâmico e rural; isto Gilberto Freyre não logrou esclarecer. Assim, o autor já na Introdução de Casa Grande & Senzala diria dos Sul dos EUA: “(...) o chamado deep south. Região onde o regime patriarcal de economia criou quase o mesmo tipo de escravo e de senzala que no norte do Brasil e em certos trechos do sul; o mesmo gosto pelo sofá, pela cadeira de balanço, pela boa cozinha, pela mulher, pelo cavalo, pelo jogo; que sofreu e ainda guarda as cicatrizes, quando não as feridas abertas, ainda sangrando, do mesmo regime devastador da exploração agrária – o fogo, a derrubada, a coivara, a ‘lavoura parasita da natureza’” (Ibidem:xlvi). Tal formulação, repetida diversas vezes ao longo deste livro, cria uma contradição, pois, entre o que seria típica do ibérico-lusitano, padrão interativo de sociabilidade, e o que seria típico do sistema escravista em geral, válido, portanto, para o Brasil, para os EUA e demais colônias organizados sobre o mesmo fundamento rural e patriarcal (Cuba, litoral peruano e venezuelano etc). Esta contradição, de fato, não chega a ferir mortalmente o edifício conceitual freyriano em Casa & Senzala, muito embora, seja virtualmente inaceitável quando for sobreposta à vindoura formulação do autor, mormente, a sua concepção lusotropicalista.