CPDOC/FGV
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 32, 2003
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Capoeiras e intelectuais: a construção coletiva da capoeira “autêntica”
Simone Pondé Vassallo
Este artigo procura compreender o processo de construção de um paradigma de
pureza do jogo da capoeira, intitulado Capoeira de Angola, que se inicia nos anos 1930
e se prolonga até os dias de hoje, ainda que reelaborado ao longo do tempo. A análise
abrange sobretudo o período compreendido entre os anos 1930 e 1960, tentando
descobrir os motivos dessa elaboração. A hipótese levantada é a de que a construção
desse paradigma é fruto de uma relação íntima entre capoeiras e intelectuais, que o
erigem conjuntamente, ainda que guiados por motivações distintas.
O itinerário seguido tenta desvendar a vasta rede de relações que se tece entre os
praticantes dessa capoeira considerada mais pura e intelectuais e representantes dos
poderes públicos, acreditando que essas articulações comprometem a sua autenticidade.
No entanto, o objetivo do estudo não é medir um suposto grau de pureza ou impureza da
Capoeira de Angola, e sim compreendê- la como uma elaboração simbólica orientada
por visões de mundo e interesses específicos. Trata-se, portanto, de contextualizar o
momento da produção de certas narrativas legitimadoras, para tentar compreender o seu
sentido e as suas motivações. Farei esta reflexão através da trajetória de mestre
Pastinha, atualmente considerado o guardião da capoeira tradicional.
Capoeira primitiva e capoeira folclórica
Ao longo do século XIX, várias alusões foram feitas à atuação dos capoeiras no
Rio de Janeiro.1 Essas referências aparecem, neste mesmo século, sob a forma de
artigos, crônicas e ilustrações nos principais jornais e revistas locais. Recentemente, o
trabalho de alguns historiadores resgatou essa documentação e ressaltou o papel ativo
desses lutadores na geografia urbana da cidade.2 Contrariando certas representações da
atualidade, a capoeira não era utilizada somente contra a polícia ou os senhores
violentos.