Erostrato∗
preciso ver os homens do alto. Eu apagava a luz e
me punha à
janela. Eles não supunham,
absolutamente, que alguém pudesse observá-los de
cima. Eles cuidam da fachada, às vezes dos fundos,
mas todos os efeitos são calculados para espectadores de um
metro e setenta. Quem jamais refletiu sobre o formato de um
chapéu-coco visto de um sexto andar? Eles não pensam em
defender os ombros e os crânios com cores vivas e tecidos
vistosos, não sabem combater este grande inimigo do Humano: a
perspectiva de alto para baixo. Eu me debruçava e começava a rir;
afinal, onde estava essa famosa “posição ereta” de que eram tão
orgulhosos? Esmagavam-se contra a calçada e duas longas pernas
meio rastejantes saíam-lhes de sob os ombros.
A sacada de um sexto andar — eis onde eu deveria passar
toda a vida. É preciso escorar as superioridades morais com
símbolos materiais, sem o que elas se desmoronam. Ora,
precisamente, qual é minha superioridade sobre os homens? Uma
∗ SARTRE, Jean-Paul. In O Muro. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1982, p. 69-87,
tradução de H. Alcântara Silveira.
É
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superioridade de posição, nada mais; estou colocado acima do
humano que existe em mim e o contemplo. Eis por que gostava
das torres da Notre-Dame, das plataformas da torre Eiffel, do
Sacré-Coeur, do meu sexto andar da rua Delambre. São excelentes
símbolos.
Às vezes era preciso descer de novo até a rua. Para ir ao
escritório, por exemplo. Sentia-me sufocar. Quando se está na
mesma altura dos homens é muito mais difícil considerá-los como
formigas; eles esbarram. Uma vez, vi um tipo morto na rua. Caíra
de borco. Tinham-no virado, sangrava. Vi seus olhos abertos e seu
ar espantado e todo aquele sangue. Dizia de mim para comigo:
“Isto não é nada, não é mais emocionante do que uma pintura
fresca. Pintaram-lhe o nariz de vermelho, eis tudo.” Mas senti
uma languidez estranha que me tomava as pernas e a nuca e
desmaiei. Levaram-m